A romantização da dificuldade
Superação virou produto e você é o cliente ideal: exausto, explorado e culpado!
Como é bonita a rotina do sofredor. Acordar todo dia às 5h da manhã, meditar por 23 minutos, tomar um banho gelado para “despertar a alma”, comer um ovo cru e postar tudo no Instagram para seus seguidores acéfalos.
Já vivemos há algum tempo na era da romantização da dificuldade. Onde ralar se tornou sinônimo de virtude e chorar no banho é um sinal clássico de merecimento.
Não basta apenas vencer, tem que sangrar no caminho, quase ter morrido.
Você não pode se dar bem de maneira linear, simples, afinal se for fácil não tem graça. Não vale.
A lógica aqui é simples: quanto mais você sofrer e exibir seu sofrimento, mas nobre você vai parecer.
Não interessa se você teve apoio, a narrativa que vende é a do guerreiro solitário, que venceu todas as adversidades, o abandono, a gastrite, o burnout, os boletos… tudo sozinho, com força de vontade apenas.
Quem nunca se deparou com um post no Instagram com a seguinte legenda: “E depois vão dizer que foi sorte”.
Meu irmão, ninguém vai dizer porra nenhuma. Vai se foder.
Costumo dizer que o LinkedIn hoje é mais tóxico que o Instagram, embora muita gente não esteja preparada para esse tipo de conversa.
Hoje os coaches na “rede de network” fazem da dor um currículo.
“Eu era camelô, hoje dou palestras em Harvard” A legenda disso poderia ser, é preciso sofrer. Se eu sofri, você também precisa, afinal, sofrer é colocar a meritocracia em ação.
A dor virou storytelling, é base para copywriting. O sofrimento é tráfego orgânico.
Superação virou modelo de negócio. O drama vende.
O esforço exaustivo se tornou uma seita, uma religião e não ouse questionar. Você vai parecer preguiçoso, ingrato ou… fraco.
Mas por que essas histórias de ode à dificuldade funcionam tanto? Por que essa merda cola e leva trouxas a pagarem mentorias vazias que não vão resolver porra nenhuma?
Tenho minhas teorias e vou soltá-las aqui e agora.
Como disse mais ou menos acima, sofrer ralar, quebrar a cara é tipo uma “prova de merecimento”, um ritual de validação. E para mim, as razões por trás disso são:
Narrativa do Heroi
A nossa “cultura” valoriza o herói que venceu tudo. A história do cara que saiu do nada, sofreu para caralho, superou obstáculos e logrou êxito no fim, vende. A dor é um enredo atraente.
Capitalismo do esforço
Existe uma lógica capitalista embutida nisso. A ideia de que se você não está vencendo ou não venceu é porque você não está se esforçando ou não se esforçou suficientemente.
Isso leva uma galera a romantizar o esforço extremo, a rotina exaustiva, a dor. O sofrimento vira virtude.
A ostentação da superação
Nas redes sociais virou moda, há muitos posts da natureza: “Eu acordava às 5h da manhã comia apenas arroz e ovo, chorava no banho e agora sou CEO”.
Isso não é “história” de superação - é apenas ostentação disfarçada de humildade.
Medo de parecer privilegiado
Muita gente tem vergonha ou sente culpa de admitir que teve facilidades. Apoio dos pais, acesso a estudo, rede de apoio.
E aí, “adiciona drama” para ser mais aceito ou respeitado. Como se ter uma vida menos difícil tirasse o valor da conquista.
Culpa e punição
Existem pessoas que internalizam que precisam pagar um preço por quererem algo bom.
Julgo que essas pessoas têm a cabeça fraca, são facilmente influenciadas por estes que pregam a dificuldade como algo belo.
Aí então, procuram ou aceitam dificuldades para que pareçam merecedores.
Enfim…
Dito isso, acho importante colocar que sim, vivemos tempos mais difíceis, mas não há motivo nenhum para romantização dessa merda.
Cada vez mais trabalhamos mais e ganhamos menos.
Ou então, aumentamos nossa carga de trabalho apenas para manter o estilo de vida que já conseguimos conquistar (e se tirarmos o pé do acelerador, nos escorre pelas mãos).
Para mim essa é a realidade.
A cada dia que passa a conta se torna cada vez mais difícil de fechar e parece que dias são adicionados aos meses que se parecem mais longos do nunca.
E se você concorda comigo, com relação à dificuldade, eu acho que a tendência é só piorar.
A uberização das profissões é um dos sintomas mais doente da sociedade em que a gente vive.
O modelo de empreendedorismo individual compulsório vende uma ideia de liberdade, mas na prática entrega o que? Insegurança, baixa remuneração e ausência de direitos trabalhistas.
É, literalmente, a institucionalização do: se fode aí, bicho.
E o pior disso tudo é ver uma galera zoando com quem é CLT. Bicho, você tem que ser muito BURRO para zoar o CLT.
Eu como PJ há mais de uma década, adoraria ter 13º, férias, vale-alimentação, vale-refeição, FGTS e participação na porra dos lucros da empresa.
Mas como autônomo fodido que ainda paga FIES só tenho ansiedade para conseguir chegar no fim do mês no azul.
Outro ponto que acelera a dificuldade é a desigualdade social cada vez mais crescente.
A concentração de renda se acentua dia após dia. Um pequeno número de pessoas e empresas detém cada vez mais recursos, enquanto o restante luta por migalhas.
Isso gera competição desleal e exaustiva, principalmente para quem está começando a vida adulta agora.
Alie a isso tudo eventos extremos, colapsos ambientais, guerras, migrações em massa, escassez de recursos naturais e o que tempos?
Aumento de tensões políticas, países mais ricos fechando suas portas com políticas anti-imigração cada vez mais duras.
E para finalizar temos a automatização e a catalisação da inteligência artificial.
A tecnologia que deveria facilitar nossa vida, vem sendo utilizada para cortar empregos e aumentar lucros.
Profissões inteiras estão em risco, mesmo as que exigem qualificação. Nesse momento você pode argumentar: “Mas novas áreas irão surgir”.
Sim, mas não na mesma velocidade dos cortes e sem garantia alguma de acesso igualitário.
Contudo, aqui cabe um contraponto importante.
Talvez estejamos nos acostumando a sofrer, porque ele já virou e vai continuar sendo rotineiro. E nesse cenário, fingir que sofrer é bonito pode ser uma maneira de não pirar.
Eu mesmo costumo fazer piada com tudo quanto é desgraça para não pirar, embora não consiga aceitar essa ode à romantização da sofrência.
A vida tem seus perrengues, sim. Mas transformar sofrimento em identidade é lesivo, perigoso.
A dificuldade não tem nada de nobre, de bonita, tampouco estética.
Ela é apenas o reflexo de um sistema falho, e que ainda faz você achar que o problema é você, que não se esforçou o suficiente.
Revolucionário mesmo é celebrar o descanso, a facilidade, o acesso igualitário. Uma vida mais simples, sem drama, sem precisar quase morrer para pagar os boletos.
Afinal, vencer sem sofrer, de forma mais linear, sem perrengues ou dificuldades também deveria ser permitido.