Será que todo mundo precisa de terapia?
A seita do bem-estar onde pensar diferente é diagnóstico.
Virou mantra de stories: “todos têm um trauma” ou então, “ninguém é 100%, todo mundo precisa fazer terapia”
Isso sem falar na galera que coloca no perfil das redes sociais: terapia em dia.
Bem-vindos ao novo jargão da era do bem-estar, onde se você não se deitar em um divã ou sentar em uma poltrona confortável (ou para os mais moderninhos, numa call com fundo desfocado) é porque você ainda não acessou o seu “eu ferido”.
Mas vem cá, e se essa certeza absoluta estiver meio furada?
Não há discussão de que a pandemia bagunçou a cabeça de geral.
A própria OMS mostrou que houve um salto de 25% na prevalência mundial de ansiedade e depressão logo no primeiro ano pandêmico de covid-19.
No Brasil, estudos da UERJ mostraram um crescimento de 50% em quadros de depressão e 80% de ansiedade apenas nos primeiros meses de 2020.
Diante desse tsunami de emoções, a busca por terapia disparou e falo disso com base no meu círculo de amigos e de colegas com quem trabalhei na época.
Até aqui, tudo faz sentido, tudo dentro da normalidade, afinal, quanto mais sofrimento, mais busca por ajuda especializada.
Segura essa ideia aí, porque eu vou azedá-la daqui a pouco.
De acordo com o Conselho Federal de Psicologia há 553 mil psicólogos cadastrados e “aptos a atuar” no Brasil.
Um grande número de profissionais, não é mesmo?
Assim, como tudo na vida, uma oferta abundante clama por uma… demanda igualmente abundante.
E aqui entramos em algo que tem acontecido muito: transmutar problema em mercado.
Vejo isso com frequência na minha área de formação.
Se na nutrição inventaram protocolos para desparasitação pra te fazer comprar suplemento sem necessidade, por que na psicologia seria diferente?
Surgem assim, os nichos terapêuticos “terapia para quem odeia o chefe”, “psicanálise para quem tem ex de determinado signo”, “sessões para quem só pensa em sextar” e assim sucessivamente.
Quando o “sofrimento” vira um ativo, empurrar cada relés mortal para uma sessão de terapia obrigatória (para não dizer compulsória), é tão instintivo quanto vender whey protein sabor red velvet, (ou pistache, porque tá na moda).
Bora fazer uma conta de padaria.
A população brasileira hoje é de 212 milhões de pessoas, os profissionais da psicologia ativos hoje são 553 mil.
Então, se “todo mundo precisa fazer terapia” isso daria 383 pacientes por profissional ao mesmo tempo.
Juntamos à essa conta, as sessões semanais e o preço médio de uma hora clínica, será que cabe no orçamento? Será que todo mundo pode pagar por isso?
Com isso vem a pergunta incômoda que ninguém quer fazer: Estamos diante de uma sociedade inteira subitamente adoecida ou estamos banalizando o alcance real da terapia?
E antes que você venha me dizer que esse artigo é anti-terapia, eu já adianto de antemão, que não é.
Respira fundo aí parça.
Sou profissional da saúde, sei que a terapia salva vidas, muda destinos, abre portas.
Já me sentei na cadeira do analisando e sei como sessões de terapia podem ser reveladoras.
O problema nasce quando a exceção curativa vira uma regra moralista: “você não faz terapia? Ah… vai negar seu trauma? Irresponsável”
Modernizaram o velho: “vai procurar um médico” para “procura o teu terapeuta, amor”.
Virou slogan fashion, meme, a lá skincare semanal.
Diante dessa “realidade”, plataformas de atendimento online que pagam merrecas para terapeutas comemoram o salto exponencial de assinantes e investidores despejam milhões nas startups e health techs do tipo, afinal sofrimento gera recorrência de assinatura e é preciso lucrar com a aflição alheia.
O algoritmo esperto (e patrocinado), te entrega um reels sobre síndrome do impostor enquanto você rola o feed eterno e se depara com o link que diz: “agende a sua sessão em menos de um minuto”.
O supra sumo do cuidado emocional.
E onde há hype há charlatanismo junto de copywriters prontos para te fazer gastar com algo que você não quer nem precisa: A pessoa diplomada com um workshop de fim de semana, que promete resolver o problema do seu pai ausente na infância com apenas cinco encontros.
Se bons terapeutas já podem causar estragos quando não “batem” com o paciente, imagina o estrago de maus terapeutas confiantes.
Mas continuemos…
Há quem colecione anos de análise, como quem coleciona pulseiras de shows, ou crachás de eventos que participou, sem mudar uma vírgula no modus operandi que os adoece.
Aí, a terapia vira álibi: “estou em processo de cura”, enquanto o processo vira areia movediça, repleto de “insights” instagramáveis, mas ação concreta que é bom? Nada.
O sofrimento nem sempre pede conserto. Sofrer faz parte da natureza humana.
Quando transformamos qualquer incômodo em patologia passível de tratamento, a gente cria uma ditadura do conserto eterno: você nunca vai estar bem, sempre vão faltar cinco sessões.
Existem dores que precisam apenas serem sentidas, atravessadas. Não há necessidade de dissecação terapêutica.
E se você chegou até aqui e ainda segura as pedras para atirar em mim, e me chamar de negacionista eu peço para que espere mais um pouco.
Eu já fiz terapia.
Não virei buda, não alcancei o nirvana. Aprendi sim coisas, mas não encontrei o Santo Graal da sanidade.
Para mim serviu, até certo ponto. Depois disso, a vida real pediu prática e lá fui eu praticar.
Ok, então quem precisa de terapia na sua visão, Murilo?
Pessoas que não conseguem sair da cama; quem sofre com pensamentos suicidas; aqueles que veem sua funcionalidade ruir; além de quem tenta, tenta e não consegue romper algum looping sozinho.
Para essa turma, terapia é ferramenta de primeira linha. E negar isso é irresponsabilidade!
Mas transformar cada angústia em indicação compulsória ou sessão semanal é reduzir a potência da terapia a mera conveniência de mercado e vou além: é escantear soluções coletivas, como condições de trabalho, moradia e políticas públicas, jogando tudo no colo do indivíduo.
Dito isso, é hora de fecharmos o divã por hoje.
Fazer terapia pode ser libertador. Mas obrigar todos a fazerem terapia e ainda vender isso como um certificado de superioridade emocional é agressivo, jocoso, hipócrita…
Se mesmo assim você quer me mandar para o divã ou para “a call” com fundo desfocado por ter ousado duvidar, não esquenta, como disse anteriormente eu já estive lá.
Funciona para alguns, não para todos e tudo bem!
E agora se você me dá licença, vou sair para caminhar com minhas cachorras. Uma sessão terapêutica, gratuita, sem ter sido indicada por ninguém.