Desde que foi votado em tempo recorde, o PL 1904/2024 vem causando indignação em quem é coerente.
Indignação e revolta, foi o que senti, assim como muitas pessoas, felizmente a maioria de quem está à minha volta.
Foi pensando em informar (e nisso eu me incluo, pois precisei me informar MUITO) que escrevi o texto que vem a seguir.
Então, após muito estudo e leitura, tentei colocar tudo de maneira mais simples e coerente possível para que o maior número de pessoas entendam, se indignem e levantem as vozes sobre esse projeto de lei absurdo.
O que diz o Projeto de lei 1904/2024?
De maneira resumida diz o seguinte: Que se um homem estuprar uma mulher e ela engravidar, será obrigada a ter o filho desse criminoso (afinal aborto é crime, importante reiterar), porque se ela quiser fazer um aborto para não ter uma criança fruto de um estupro, pode pegar mais tempo de cadeia de quem a estuprou.
E isso vale também para crianças, afinal, cerca de 60% dos estupros registrados no Brasil são de meninas de até 13 anos de idade. Ou seja, crianças.
Aborto no Brasil hoje
Existem hoje no Brasil, três situações nas quais o aborto não é considerado crime por aqui:
Quando a gravidez representa risco de vida para a gestante;
Quando é resultado de um estupro;
Quando o feto é anencéfalo.
Logo, nessas situações o aborto legal é permitido e realizado, inclusive pelo SUS - Sistema Único de Saúde.
De acordo com o código penal brasileiro, desde 1984 o aborto induzido é considerado crime contra a vida humana.
Realizar um aborto induzido “fora do que é permitido” pode acarretar em detenção de um a três anos para a mãe que causá-lo ou dê permissão para que outra pessoa o cometa.
Nesse último caso, a pessoa que realizou o procedimento pode pegar de um a quatro anos de prisão.
Quando o aborto induzido é provocado sem o consentimento da mãe, a pessoa que o provocou pode ser condenada a quase dez anos de reclusão.
Aborto já é legalizado no Brasil, mas pra quem tem dinheiro
De acordo com um levantamento feito pela Folha de São Paulo através das mãos de Cláudia Colucci, O SUS gasta cerca de meio bilhão de reais com complicações oriundas de abortos em uma década.
Em uma década, o Sistema Único de Saúde gastou R$ 486 milhões com internações para tratar as complicações do aborto. Dentro dessa cifra, 75% deles foram provocados.
De 2008 a 2017, o número de mulheres internadas foi de 2,1 milhões.
Em quase um terço das internações houve sérias complicações após o aborto, tais como hemorragias e infecções. Ao menos 4.455 mulheres morreram entre 2000 e 2016.
A ilegalidade do aborto, não impede sua prática.
Contudo, afeta de maneira drástica o acesso a um procedimento que seja seguro, impondo maior risco de complicações de morte materna que seriam evitáveis.
Estima-se hoje que sejam feitos de 950 mil a 1,2 milhões de abortos no Brasil anualmente.
SUS acaba sobrecarregado e profissionais julgam
As complicações por aborto consomem uma série de recursos de saúde, como medicamentos caros, centro cirurgíco, leito de UTI e bolsas de sangue.
Por ano, são mais de quinze mil mulheres internadas por pelo menos quatro dias. Dessas, pelo menos um terço sofre com complicações graves. Nesses casos, o custo para o Sistema Único de Saúde é mais de 300% maior em relação aos casos que não se complicaram.
Em média, 260 mulheres morrem anualmente por conta das complicações.
Convenhamos que, são mortes praticamente 100% evitáveis, que só acontecem por falta de acesso a procedimentos seguros, com assistência, que na maioria das vezes acontecem no auge da vida reprodutiva das mulheres, que acabam deixando outros filhos órfãos.
Isso sem falar nas mulheres que passaram pelo procedimento e foram julgadas por profissionais que deviam estar ali apoiando-as e cuidando positivamente de sua saúde física e mental.
PL visa tornar o aborto ilegal em qualquer circunstância
Depois de uma (longa) introdução, é hora do texto abordar - sob o meu ponto de vista, o Projeto de Lei, bem como a cabeça de quem o colocou para votação.
A ação é parte de uma estratégia de tornar o aborto ilegal em qualquer circunstância.
Inclusive, essa pauta ignora que os abortos clandestinos são problemas de saúde pública e não de segurança.
Assim, se aprovado, revoga direitos que embora ainda existam, dificultam o acesso ao atendimento.
A real é que o Brasil “não tem braço” para apoiar o aborto legal e os poucos que existem, dificultam ainda mais o procedimento.
Consultas com assistente social, exames de imagem, além de “profissionais da saúde” que julgam as mulheres que fazem o procedimento dentro da “legalidade”, são alguns exemplos das dificuldades impostas pelo estado hoje.
Há, inclusive, um absurdo projeto de lei que está em trâmite que quer obrigar a mulher ou criança estuprada a ouvir os batimentos cardíacos dos fetos.
Por que 22 semanas?
Por que o projeto mira em 22 semanas? Você já se perguntou sobre esse número?
Porque os estupros de vulneráveis, normalmente são descobertos após essa data, uma vez que são tios, avôs, pais ou amigos da família que estupram crianças que não entendem que aquilo não se trata de carinho.
Lembram do emblemático caso no qual a ex ministra e agora atual senadora Damares vazou nome e endereço da menina estuprada que estava em busca de um aborto e precisou sair escoltada de casa?
Então…
Essa linha de vinte e duas semanas, praticamente impediria toda criança estuprada nesses moldes de conseguir fazer um aborto legal, como é “permitido” nos dias de hoje.
Em 2022, 75 mil casos de estupros foram registrados. Destes, 60% foram de crianças até 13 anos. CRIANÇAS.
Segundo o IPEA, A cada minuto duas mulheres são estupradas no Brasil.
Isso sem falarmos na subnotificação.
Criança não é mãe, porra!
O que deveria estar sendo discutido?
No meu livro (compre o seu exemplar aqui), há um capítulo cujo título é: Gilead aqui, no qual fiz uma analogia entre o momento que vivíamos no Brasil, com a capital de um país que é tomado por fundamentalistas religiosos e se torna uma teocracia baseada em bons costumes, onde as leis não valem para os poderosos e as mulheres são renegadas a nada.
Tipo o que o PL está propondo, convenhamos.
Gilead é retratado no livro O Conto da Aia, escrito por Margaret Atwood. O livro virou série, inclusive. Recomendo ambos.
Em pleno ano de 2024, o congresso não deveria estar tentando criminalizar quem aborta, mas sim, discutir assistências às vítimas; acesso ao aborto seguro para quem foi estuprada; educação sexual nas escolas para que as crianças aprnedam a se defender e a identificar quando estão sendo violentadas.
Na Rússia, o aborto é legalizado há mais de 100 anos. A liberação ocorreu quando o país ainda era União Soviética.
A legislação brasileira, quando se fala de aborto, está na mesma linha de países como Afeganistão, Irã e Síria.
É um absurdo, querer criminalizar uma criança, uma mulher por não querer ter um filho fruto de um estupro.
Impactos físicos e mentais
Ser vítima de um estupro é algo que deixa marcas e impactos físicos e mentais para o resto da vida de uma criança ou de uma mulher.
O óbvio sempre precisa ser dito, então vamos a eles.
É óbvio dizer que criança não é mãe, assim como estuprador não é pai.
Imagine a saúde mental de uma criança que não entende que foi estuprada e vai precisar gerar uma vida porque uma câmara de políticos vagabundos e imorais assim decidiu.
E vamos além, há impactos físicos também.
Um corpo de uma criança não é compatível com a geração de uma nova vida.
Será que quem propôs e quem apoia esse projeto de lei não tem filhas, sobrinhas, netas?
E saindo da seara do estupro em si e partindo para a questão do aborto.
Se uma mulher engravida e não quer ter um filho ela não pode optar por tê-lo?
O corpo e o desejo da mulher em se reproduzir é dela e só dela. Ninguém além dela tem a ver com isso.
Esse direito e desejo feminino não pertence aos homens, não é de religião, tampouco da política.
Por que tanto se julga o aborto feminino e não se fala em aborto masculino? Onde no qual o homem ao saber da gravidez, simplesmente abandona a mulher e o futuro filho?
E tem mais um ponto, essa galera que defende fetos, mesmo oriundos de estupros, só se preocupa até o nascimento.
Assim que vem ao mundo, eles são esquecidos. Se vai ter acesso à alimentação, estudo, saúde, com isso ninguém se preocupa.
Esse absurdo PL está encabeçado pelo que chamamos de bancada evangélica, homens brancos, endinheirados, “poderosos”, corrompidos e pseudoreligiosos.
É relativamente comum nos depararmos com “líderes religiosos” acusados de assédios, estupros.
Se alguma menina ou mulher da família de quem está por trás desse projeto de lei engravidar, seja proveniente de estupro ou não e não quiser ter a criança o que será feito?
Será feito o aborto, em uma clínica clandestina, mas com o pleno acompanhamento e segurança médica.
Isso se a mulher não for colocada em um avião e levada até um país onde o procedimento é legal.
O projeto é coordenado por pessoas que se autodenominam cidadãos de bem. Contudo, é importante lembrar que, o cidadão de bem é contra o aborto até a sua amante engravidar.
A vida reprodutiva das mulheres hoje não as pertence, e sim ao estado - que no papel é dito laico.
Aproveito o ensejo e faço das palavras do Jornalista Azevedo as minhas: “Está em curso um processo de captura do estado e das instituições por intermédio de igrejas e não para realizar o “projeto de deus”, mas para realizar o projeto de homens”
E para finalizar, gostaria de dizer que seria perfeito se todos lembrassem que a religião alheia só proíbe algo a quem a segue.
Ou seja, a sua religião TE proíbe de coisas, mas não ME proíbe de nada.
Se para mim, que sou homem, tá cada dia mais foda viver por aqui, eu tento imaginar (sem conseguir, é claro) como é ser mulher.
Às crianças e mulheres todo o meu apoio e empatia.
Perfeito! Abordagem completa, inteligente, social, psicológica...enfim é um documento!
Sugiro que batalhe pra esse texto seja lido por muitos conseguindo uma publicação. Eu farei nas redes que tenho acesso, pois meu acesso é público, amigos e parentes.